Isaura

Córrego das Almas Piedosas é um lugarejo encravado nas montanhas de Minas Gerais.  É um lugar pacato, de pessoas trabalhadoras e religiosas. Em frente à igreja católica há uma praça que todos chamam de Praça da Matriz e é onde o povo se reúne após a missa e normalmente é ali que acontecem as festas da igreja, como a de São João. As pessoas esperavam aquela data para verem os balões, as apresentações e degustarem as iguarias das barraquinhas. Era o momento para um bom bate papo entre as comadres e entre os compadres e tudo sempre correu normalmente, com muita alegria, fé e entusiasmo dos organizadores da festa.
Isaura, a filha mais velha de senhor Joaquim e de dona Gertrudes, retornou da capital mineira justamente no dia da festa.  Seus pais eram donos do único ponto de comércio do lugar, uma espécie de mercado, onde se vendia de bola de gude a artigos de papelaria e açougue. Foi uma festa e os homens, algumas mulheres também,  arrumaram pretextos para irem à venda como era chamado o comércio, só para verem a bela Isaura. Ela era uma moça de traços rústicos, olhos grandes, cabelos lisos e negros cobrindo as costas, lábios carnudos e arroxeados, a pele morena tipo índia diferenciava-lhe das outras moças e isso lhe rendia mais atenção. Seus seios eram empinados e firmes... Suas curvas eram estonteantes, mas ela sempre agiu com muita naturalidade com todos e era a queridinha nas festas da igreja, pois estava de frente e ajudava as comadres a organizar tudo. Adorava gritar o leilão quando mocinha, mas agora estava com 22 anos. Não era mais uma menininha ingênua. Talvez tivesse vergonha, porém os organizadores da festa foram correndo convidá-la. Sem cerimônias ela aceitou o convite e disse que estava muito feliz por retornar à sua terra e poder ajudar a comunidade.  
À noite aquela praça ficou lotada. Pessoas de outras redondezas foram participar daquela tão esperada festa. O padre estava eufórico e andava de um lado para o outro no meio daquela gente toda, cumprimentando um e outro, e na oportunidade degustando as deliciosas iguarias.
Isaura aparece com um vestido vermelho até os joelhos, muito bem comportado conforme pedia a ocasião, mas suas curvas se tornavam visíveis graças ao vento que vez ou outra soprava com mais força. Com a desenvoltura de outrora gritou o leilão e conseguiu chamar a atenção com sua simpatia, com seu jeito doce e angelical de sempre. Aproximou-se de sua mãe com uma vasilha de frango frito e sussurrou no seu ouvido: “Hoje o mundo vai cair, mas fique de pé!” Sua mãe não entendeu muita coisa, mas não teve como perguntar, pois logo Isaura se retirou, depositou a vasilha numa mesa e se dirigiu para o coreto que ficava no meio da praça.
_ Por que estão indo embora se o leilão ainda não acabou? Prestem atenção que o melhor leilão ficou para o final.
Todos os olhares se voltaram para ela. O que seria de tão importante? Teria trago alguma jóia da cidade grande? Pensaram alguns e comentavam entre si, cada um querendo adivinhar o que seria. Foram se aglomerando perto do coreto. Isaura olhou por cima aquela multidão e continuou:
_ E aí, já adivinharam?
Ela não estava com nada nas mãos. O que seria? Olhares atentos e curiosidade aguçada tentando descobrir o que seria leiloado. Aquela multidão se espremia ao redor do coreto.
_ Vou leiloar o meu corpo! – Gritou.
_ Oh!! – Ouviu-se um coro da multidão.
Isaura começou a tirar o vestido.
_ É o que querem, não é, seus hipócritas? Mas de graça nada tereis. Quem vai dar o primeiro lance? Ninguém vai ter coragem?.... Talvez eu precise tirar mais peças do meu vestuário... O que aconteceu?... O produto aqui é sem valor?
As mulheres estavam boquiabertas e os homens alvoroçados e se empurravam pra chegarem mais perto.
Ela tirou o sutiã e seus seios brilharam diante das luzes.
_ Ainda não apareceu nenhum lance? Não vai dizer agora Sr. Anísio? Diga seu lance, aquele que o senhor me falou quando eu passava com aquele pudim. Perdeu a língua, covarde?... Não vai dizer nada Sr. Antônio?  Acho que vou ter que tirar a calcinha... E você Nestorzinho, não vai repetir o que sussurrou nos meus ouvidos ainda há pouco? Não sou mais aquela bobinha de antes, agora terão que me pagar se quiserem por as mãos em mim, seus imundos!
Ela se abaixou e tirou a última peça de roupa. Ficou completamente nua diante daquela multidão e aqueles três homens saíram sorrateiros e tomaram rumo de casa.
_ Depravada! – Gritou dona Amália, sua vizinha.
Isaura olhou para ela e sorriu.
_ A senhora... Quer dizer você, porque senhora é pra alguém de respeito, dona Amália deveria ter vergonha. Por baixo dessa pele de cordeiro há um demônio de saia. Pensa que meu irmão nunca me contou das suas aventuras com ele? Pensa que eu não sei como você gosta de ser chamada na cama? Quer que eu repita aqui na frente de todo mundo? Creio que não, mas vou falar assim mesmo. (Percorreu os olhos pela multidão depois mirou dona Amália). Franguinha! Por favor, me chame de franguinha neném! Francamente! Que coisa mais sem graça e chula! Galinha velha! Isso é o que você é.
Alguns risos reprimidos se ouviram lá no fundo. Dona Amália se engasgou e fingiu um desmaio. Foi socorrida por algumas comadres enquanto o padre ia saindo de fininho.
_ Não foge não padre! O pastor que não conduz bem suas ovelhas será punido no dia do juízo final, mas não revelarei seus delitos, pois ai daquele que tocar no ungido de Deus. Sorte sua.
O pai de Isaura aproximou-se do coreto e pediu para que ela parasse com tudo aquilo, que vestisse suas roupas e fosse pra casa.
_ Papai, por que o senhor não tira o ímã da balança ao invés de querer me tirar daqui?
Muitos já nem conseguiam contemplar sua nudez tamanho era o medo de ver seus delitos expostos publicamente. Uns conseguiam sair despercebidos no meio da multidão, outros eram flagrados por Isaura e aí a bomba explodia.
- Sabem por que eu sai de Córrego das Almas Piedosas? Porque eu não agüentava mais ver essa vida ambígua de vocês!  Durante a semana servem ao diabo e aos domingos servem a Deus. Eu fui estuprada por aquele homem ali – disse apontando o dedo para Sr. Haroldo, o fazendeiro mais rico da região. Ele ameaçou matar meus pais caso eu contasse a eles. Como pode um homem desse ser líder nesta igreja? Pois hoje é o dia da minha vingança! E sua pobre mulher suportando seus maus tratos. Mas é uma tapada e merece o marido que tem. Claro que ela sabe de suas safadezas e não se separa porque não sabe se virar sozinha. Conformou-se com a vidinha de chifruda.
Alguns queriam apedrejá-la, o padre interferiu. Isaura continuou:
- Sabem por que o mundo está este caos? Por causa de pessoas como vocês! Poucos aqui são dignos de honra. O resto é digno de pena. Não se comprometeram com a verdade e usam máscaras o tempo todo. Eu assumo diante de todos vocês que sou devassa, adepta dos prazeres carnais e confesso que já me deitei com todos os homens deste lugar, dos mais novos aos mais caquéticos, só meu irmão eu poupei, embora já tive orgasmo observando-o pelo buraco da fechadura enquanto ele tomava banho, fiquei louca ao ver seu membro viril e entreguei-me à fantasia naquele momento... Quem são vocês? Será que sabem quem são? Por que ninguém teve a coragem de dar um lance por este corpo nu? Por que me cantaram enquanto eu gritava o leilão e agora estão mudos? Por que me comeram com os olhos e agora estão aí sem voz? Falem malditos! Defendam-se! Não há defesa contra a verdade. Idiotas! Estúpidos! Nada fica encoberto debaixo dos céus, será que não sabem disso? (Ela passou a mão na testa enxugando o suor) Como vocês são medíocres! Quanta safadeza há no meio de vocês! Quanto compadre se deitando com as comadres... Quantos rapazes se valendo de animais para saciar seus prazeres! Que nojo eu tenho de vocês, raça imunda! Tenham coragem de assumir o que realmente são: devassos, gananciosos, infiéis, inescrupulosos...
- Chega! – Gritou sua mãe. Pelo amor de Deus minha filha, desça daí e vamos pra casa. Quem pode afirmar tudo isso que você está falando?
Isaura colocou as mãos na beirada do coreto e disse:
- Mamãe, eu ainda não acabei! Preciso fazer uma última declaração. (Nisso ela percorreu os olhos para encontrar seu alvo e ao encontrá-lo o chamou pelo nome) Alfredo! Aproxime-se!
Ele se recusou e começou a se afastar com os olhos fixos nela.
- Está com medo? Este que tantas vezes me insultou e me difamou dizendo que transava comigo é boiola, gay, homossexual. Na linguagem de vocês, ele é bicha, gosta de homens! Já sai com ele uma vez, mas não deu em nada, suou frio, molhou a grama onde estávamos e eu voltei pra casa cheia de vontade, ardendo de desejos. Que desperdício! Um rapaz tão bonito. Assuma sua sexualidade, ninguém tem nada a ver com isso! Pare de se esconder nas saias dessas meninas tolas que nem sabem o que é isso.
- É mentira! Gritou ele se retirando em disparada.
Isaura sorriu e continuou:
- Lembram daquele rapaz que ficou instalado na casa de papai um tempo, dizendo que veio fazer uma pesquisa sobre a região? Pois é, era um detetive e descobriu tudo o que eu queria. Vou distribuir as fotos dessa Sodoma por esta praça. Amanhã venham e comprovem com seus próprios olhos. Isto é, se não me assassinarem durante a noite. Ah! Vocês não podem perder esta: A viúva dona Consuelo. Sabiam que ela e o sobrinho de seu falecido trepam? E ela fica aí dando uma de puritana. Nunca mais quis marido, mas homem ela quer a todo instante. Tem um fogo no meio das pernas que não vai apagar tão cedo.
A sua mãe estava quase tendo um ataque cardíaco. O pai já havia se retirado e o irmão estava boquiaberto, mas não se pronunciou em nenhum momento.
- Por que fiz tudo isso? Pra mostrar que vocês são como os fariseus, como túmulos caiados. Por fora tudo muito bonito, mas por dentro é podridão pura. Não brinquem com o sagrado. Não brinquem com religião. Não usem a igreja para esconderem seus erros e se parecerem bonzinhos... Por que não quiseram pagar nenhum centavo por meu corpo? Se fosse noutro lugar... Imbecis! Mascarados! Sejam autênticos!  Escondem dos homens, mas não escondem Dele (apontou o dedo para o céu). Um pé lá e outro cá! Isso é abominável! Cambada de mornos! Serão vomitados! Entre o mundo e o sagrado, optei pelo profano, as duas coisas não combinam e eu cansei das máscaras que me colocaram. Tirei todas e agora estou aqui diante de vocês como realmente sou: nua. Isso mesmo. Eu me despi de todas as mentiras, de toda enganação. Sou o que estão vendo e não o que imaginam.
Isaura ainda continuou a falar por mais uns vinte minutos até que restou apenas um rapaz na praça. Ele estava sentado com uma bolsa ao seu lado.
- E de mim você não tem nada a dizer? – Indagou sorrindo.
Ela desceu do coreto após vestir suas roupas, caminhou suavemente até ele e disse:
- Tenho. Mas só vou dizer depois que me mostrar a filmagem.
Beijaram-se apaixonados.
- Ficou perfeito! Você arrasou! Vai tirar nota máxima e ainda assinar um contrato com uma grande companhia de teatro! Convenceu a todos com suas mentiras!
_ Mentiras... Quem disse que são mentiras? – Respondeu com um sorriso sarcástico e o beijou vorazmente.


           Juarez do Brasil

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do enredo, embora achasse que fosse tomar um rumo diferente no final. Surpreendeu-me. Parabéns!

João Antônio Cavalcanti

Anônimo disse...

Esta Isaura é uma maluca. Este conto dá um filme. Ótimo.

Francisco Torres de Souza Galvão.