Lembro-me que antes de sairmos para o passeio de barco,
Úrsula pediu a Samuel para checar o e-mail dela, enquanto arrumávamos nossa
bagagem.
_ Samuel! Só abra...
_ ... Já sei mãe. Só abra e-mails confiáveis e apague os da
caixa de lixo eletrônico.
Rimos juntos enquanto terminávamos de arrumar as coisas
para a viagem. Peguei a máquina fotográfica e certifiquei de que estava tudo
certo. Depois fomos até Samuel. Ele estava abrindo uma conta de e-mail.
_ Meu filho, a mamãe já falou que ainda não é hora. Você
tem apenas sete anos. Tenha paciência...
_ Meus colegas tem, só eu não posso.
Na verdade, eu não via problema nisso, mas respeitava a
opinião de minha mulher e não interferia. Samuel apagou nervoso o que já tinha
feito e em seguida desligou o computador. Antes, porém, imprimiu algumas fotos
dele recebendo o quadro que ganhara na escola e disse que levaria para mostrar
aos seus colegas. Ele foi o vencedor do concurso de desenhos.
Quando chegamos ao barco, os alunos da sala dele estavam
eufóricos, juntamente com os seus acompanhantes e professores. Eram gritos e
risos para todos os lados. Ao verem Samuel alguns colegas gritaram: “Olha o
menino do girassol azul!” Chamaram-no assim por causa do desenho que ele fez no
concurso. A diretora da escola fez a chamada e fomos entrando conforme falava
os nossos nomes. Depois que todos entraram o capitão pediu silêncio e disse:
_ Infelizmente o capitão Maré não pode estar este ano com
vocês, pois amanheceu passando mal. Então me pediram para substituí-lo. Não sei
se foram avisados, mas não é nada grave, apenas um mal estar. Prometo que
tentarei ser tão bom quanto ele e levar a todos vocês com tranqüilidade e
segurança. Se precisarem de alguma coisa é só me chamar. Meu nome é Jorge.
Depois a diretora Beatriz fez as suas recomendações e
partimos. Olhei no relógio. Marcava 13h30min. A paisagem era linda. Águas
límpidas que permitiam ver bem lá no fundo. Comecei a tirar fotos de todo
mundo. A cada movimento era um grito de “olha lá!” “O que é aquilo?”...
Samuel se divertia com seus colegas enquanto eu e Úrsula o
observávamos admirando sua facilidade em se comunicar. Gesticulava e apontava
para o mar, mostrando uma tartaruga para os colegas.
Nisto o barco deu uma parada brusca e muitos de nós fomos
ao chão. Houve um alvoroço naquele instante e logo em seguida o capitão
apareceu e disse:
_ Atenção! É preciso muita calma agora. Ouçam o que vou falar.
Nosso barco está com um problema e pode afundar a qualquer momento. Já chamei
salva-vidas que devem estar chegando. Não entrem em pânico! Primeiro vão as
crianças, depois as mulheres e por último os homens.
Suas palavras surtiram efeito contrário. A partir daquele
momento o terror se instalou entre nós. Gritos por socorro, choros, orações,
clamores...
Agarramos nosso filho e tentamos manter a calma. Um bote
aproximou-se rápido de nós.
_ As crianças! – Gritou o barqueiro! Andem rápido, vocês
não tem muito tempo!
Os pais foram colocando seus filhos naquele bote. Muitos
não queriam ir, agarravam-se às mães ou aos professores, mas eram quase que
jogados. Aqueles choros de pavor foram horríveis. Úrsula se agarrou a Samuel e
não queria deixá-lo ir, mas o capitão a forçou soltá-lo.
- Não! Eu quero meu filho comigo! – Gritou desesperada.
Todas as crianças foram levadas por aquele bote. Logo em
seguida o barco começou a afundar. O capitão pegou uma bóia e se atirou ao mar.
Foi uma luta para conseguirmos coletes. Segurei na mão de
minha mulher e pulamos na água. Nadamos até o capitão e nos apoiamos em sua
bóia. Um barco de pesca que passava por perto nos resgatou. Três pessoas não
conseguiram se salvar, duas mães e o avô de uma das crianças.
Chegamos aflitos à praia e fomos procurar nosso filho. Não
víamos ninguém da escola, não víamos nenhum bote, nenhuma criança. Saímos
procurando e perguntando às pessoas.
_ Eu vi umas crianças entrando num furgão preto e...
_ Onde senhora? – Indaguei aflito.
_ Ali senhor. Saiu na direção do centro da cidade – disse
apontando o dedo. O que aconteceu?
Saímos sem responder.
_ Cadê o capitão, Hélio?
_ Não sei Úrsula. Não o vi depois que chegamos aqui,
respondi.
Reunimos com todos os pais e fomos até a polícia. Estávamos
desorientados e sem saber o que tinha acontecido. Informaram que havia uma
quadrilha especializada em tráfico de crianças que estava atacando naquela
região. Já havia mais de dez casos de desaparecimento, mas isolados, não em
massa como aquele.
Voltei pra casa e escutei minha mulher falando a todo
instante que não queria ter deixado o filho ir naquele bote. Culpava-se por ter
deixado o capitão tirá-lo de seus braços.
A partir deste acontecimento nossa vida se tornou um
martírio. Úrsula não se conformava com o desaparecimento do nosso filho. A
investigação era lenta e a cada dia eu, ao contrário de minha mulher, ia
perdendo a esperança.
Abria sua caixa de e-mail várias vezes por dia pra ver se
Samuel lhe mandava notícias. Distribuiu fotos dele pela internet. Estava obstinada,
alucinada e disposta a tudo para tê-lo de volta. Um dia eu lhe disse que ela
deveria parar de procurá-lo, pois já deveria estar morto. Chamou-me de
insensível, de pai desnaturado, sem amor. “Ele está vivo dentro de mim” disse.
_ Úrsula, meu amor, preste atenção, Samuel é inteligente,
esperto, já teria dado notícias, telefonado, passado e-mail, sei lá... Eu acho
que temos que seguir adiante com nossa vida e não nos prendermos nesse
acontecimento.
Ela faltou pouco me bater, disse que eu estava desistindo
muito fácil da vida de nosso filho, que enquanto vida tivesse lutaria para
encontrá-lo e assim o fez. Nada demolia sua idéia. Desde aquele fatídico dia
minha mulher passou a viver em função dessa busca alucinada. Chegou a um ponto
que não suportei mais e nos separamos.
Dentro de um mês foram encontradas cinco das crianças que
estavam naquele barco. Todas com vida. Ficamos esperançosos, mas nosso Samuel
não estava entre elas. Era muito dolorido pra mim aquela dúvida. Em alguns
momentos eu tinha certeza que meu filho estava morto e outras vezes eu parecia
ouvir a voz dele me chamando. Acordava no meio da noite e não conseguia mais
dormir. A sua imagem ficava na minha frente com aquele sorriso moleque.
Seis meses depois eu estava sozinho em meu apartamento
quando Úrsula foi me visitar. Estava muito abatida, mas com um semblante de
esperança no olhar. Disse que a partir daquele dia iria usar uma única camiseta
que já havia mandado confeccionar. Só tiraria no dia que reencontrasse
Samuel. Não era promessa, era só um meio de chamar a atenção das pessoas. A
estampa da camisa era a foto do nosso filho com seu girassol azul, e logo
abaixo estava escrito uma frase com letra verde: Eu não desisti de você, meu
filho! Essa mesma foto ela espalhou pela internet, jornais, revistas. Fiquei
tão comovido com sua atitude de mãe que aderi ao seu plano de ação e naquele
mesmo dia voltei pra ela muito arrependido por não ter sido um bom companheiro,
por ter sido covarde.
Com o tempo a nossa busca não diminuiu, mas passamos a ter
uma vida normal, sempre com o mesmo objetivo, mas reaprendemos a viver com a
ausência do nosso filho, pois assim ganharíamos forças para lutar. Não podíamos
nos entregar ao desânimo nem à tristeza. Íamos a festas, passeávamos e como de
costume, todo ano viajávamos para o exterior. Quando fizemos bodas de prata,
Úrsula quis retornar ao local onde passamos a lua de mel: Veneza, na Itália.
Revivemos nossos primeiros momentos de casados e percebemos
que o nosso amor era o mesmo ou talvez mais forte. Um dia antes de retornarmos
ao Brasil, fomos ao teatro. Logo que entramos percebemos um rapaz moreno de
olhos claros olhando fixamente pra nós. Confesso que fiquei retraído. Desviei o
olhar, mas ele estava mesmo nos encarando. Na verdade estava fixado na estampa
de nossa camisa. Tomei coragem e fui até ele. Perguntou-me quem eu era.
Perguntei por que olhava para nossas camisas. Por um momento meu coração gelou.
Seria meu filho? Úrsula tremia e quase já deixava as lágrimas rolarem pelo seu
rosto. Depois de uns dez minutos de conversa, pediu para ir com ele. Ficamos
com medo, mas resolvemos acreditar em suas palavras. Disse que sabia onde
estava o nosso filho. Estudara junto com Samuel e ele sempre exibia aquela
foto.
Confesso que foram os minutos mais demorados da nossa vida.
Pietro nos levou até uma boate. “Ele sempre vem aqui”, disse. Esperem aqui
fora!
Ficamos esperando ansiosos pelo reencontro. De repente
aparece em nossa frente um jovem muito bem vestido que ao nos ver fica
estático. Nossos olhares se cruzaram e nossas almas se juntaram em uníssono
para celebrar aquele momento. Abraçamos e beijamos nosso filho como loucos.
Choramos. Rimos. Depois nos sentamos e Samuel nos disse olhando a camisa: “Eu
sabia que não desistiria, mãe. Eu também nunca desisti, mas a senhora sempre
apaga o lixo eletrônico e não abre e-mails de estranhos.
Ele nos contou que foi criado por um casal milionário e que
sofreu muito quando seus pais adotivos disseram que nós havíamos morrido
naquele barco. Depois disso não tentou mais se comunicar conosco. Levou-nos até
sua casa e ao ver seus pais adotivos Úrsula aproximou-se bem deles e disse:
_ Obrigada por nos fazer sofrer durante todo esse tempo,
obrigada por todas as dores que sofri desde aquele dia até hoje.
Terminou a fala esbofeteando a face dos dois com uma força
tal que nunca vi igual. Samuel a abraçou e a beijou carinhosamente.
_ Vamos embora!
Tiramos nossas camisas e a paz retornou à nossa alma.
Um comentário:
Belo e triste texto Juarez...
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