O melhor vizinho


Tenho certeza que o gosto de sangue lhe veio na boca tão logo sentiu o golpe em sua mandíbula, pelo lado esquerdo. No primeiro instante deve ter ficado tudo escuro, depois viu pontinhos brilhantes ao longe e eles giravam ao seu redor. Ele cuspiu no chão e um filete de saliva ficou grudado em sua barba. Cerrou os punhos com força e partiu para cima do seu agressor. Este desviou pela direita e lhe deu um pontapé na barriga, fazendo-o curvar-se gemendo de dor. Antes que se recuperasse viu um pé vindo em direção à sua testa. E eu garanto que foi a última coisa que viu antes de cair.

Sua cabeça pareceu quicar quando
bateu no chão. Antes que pudesse se levantar sentiu um pé esmagando seus testículos. Ele se contorceu e segurou nas pernas do agressor tentando se livrar dele, mas suas forças tinham se esgotado.
Eu observava tudo de trás de uma árvore. Dava para ver claramente os dois. O que batia era meu vizinho, Arnaldo, um grande amigo. O outro eu não conhecia, mas eu sabia que não merecia aquela surra que dali a pouco acabaria em morte. Mas às vezes, a pessoa está no lugar errado e na hora mais errada ainda. Então, se há culpado, é apenas o destino que o jogou naquela situação.

Mas o que me impressionou foi o ódio de Arnaldo. Na verdade compreendi que a frase violência gera violência faz todo o sentido. Naquele momento ele foi mais movido pelo ódio do que pelo amor pela sua filha, pois ao invés de socorrê-la primeiro, preocupou-se em fazer justiça com as próprias mãos, o que foi um grande erro, pois vitimou um inocente. Tão inocente quanto sua filhinha Ananda, que jazia ali no chão dando os últimos suspiros.

Enquanto ele viu aquele homem respirar, ele o esmurrou. Só parou quando teve certeza que nele não havia mais vida. Então se levantou, enxugou o suor da testa com as costas das mãos e foi correndo pegar sua filha no colo. O vestido dela estava empapado de sangue. Ele a levou para o seu carro que estava a uns cem passos dali e partiu para o hospital. Mas já era tarde demais. Os médicos não conseguiram reanimá-la.

Se ele não tivesse sido dominado pelo ódio, Ananda estaria viva. Porém, as coisas concorreram a meu favor, o que me deixa tranquilo.
Eu levei a esposa de Arnaldo ao hospital, pois foi para mim que ele ligou quando socorreu a filha.

Eu o abracei e o consolei como fazem os melhores amigos. Só não chorei. Mas fiquei o tempo todo ao lado dele e ajudei em tudo no funeral. Melhores amigos fazem tudo um pelo outro. Principalmente nos momentos difíceis. E tenho certeza que ele será grato pelo resto da sua vida, por tudo o que fiz por ele naquele dia. Bom, exceto uma coisa, a qual ele não precisa saber. Mas agora tenho certeza que a vida dele vai melhorar. Ele tinha muitos gastos com Ananda. Vivia no médico. Na verdade, o que fiz foi ajudá-lo a economizar. Com um filho só e saudável como o Davi ele vai prosperar. Espero que não arrume outro.

Fui em casa tomar um banho antes do velório começar, e quando cheguei na sacada dos fundos da minha casa, olhei para o quintal de Arnaldo e tive um vislumbre de Ananda tomando banho de mangueira só de calcinha. Ela jogava água pra cima e depois no Davi que apareceu só de cueca com um carrinho de plástico na mão. Os dois riam e brincavam com aquela mangueira durante horas. De repente ela sumiu e eu só conseguia ver Davi. Ele acenou para mim chamando para brincar com ele.
Agora não querido, pensei.”
“Deixa papai se recuperar primeiro”
 
Entrei no banheiro e fiquei pensando em Davi. Teria a pele macia como Ananda? Será que se debateria tanto quando ela quando sentisse meu corpo sobre ele? Será que me perguntaria: “O que está fazendo, tio?” Será que também diria que não gosta desta brincadeira? Só que não é uma brincadeira...
Comecei a ficar excitado. Tomei o banho rapidamente e fui para o velório. Tinha que estar o tempo todo ao lado do meu amigo. Meu melhor amigo Arnaldo. Ele precisava de mim naquele momento, e eu precisava dele para alimentar o meu ego. Como eu precisava.

Você pode me achar um cara mal, mas não sou. Eu jamais iria matar a minha menininha. Quem a matou foi o seu pai, pois se deixou dominar pela ira e não pensou nas consequências. Eu só ensinei a ela como é brincar de médico de verdade, de papai e mamãe... Acho que no fundo ela até gostou porque cravou as unhas nas minhas costas.

Davi veio correndo quando me viu e se atirou em meus braços. Eu o apertei contra meu peito e beijei seu rostinho suave. Estava com cheiro de bebê apesar dos seus seis anos. Coloquei-o de volta no chão depois e... não interessa o que passou pela minha cabeça. Não interessa o que eu pensei.

A vida parece muito cruel para algumas pessoas, não é mesmo?

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